Mestre Flávio Saudade
De muitas palavras e ações, esse é Flávio Alex Mesquita Soares, o Mestre Flávio Saudade.
Antes de prosseguir, aviso que a formalidade aqui é minha, se dependesse do entrevistado deixaríamos os títulos de lado. O mestre me pediu em nosso primeiro contato que o chamasse apenas de Saudade, "Deixemos essa coisa de Mestre para os grandes", disse humildemente quando eu o convidei a conceder essa entrevista.
A vontade de entrevistar o Gonçalense de 38 anos surgiu ao ler o livro "A visita", de sua autoria.. A curiosidade sobre o Projeto Gingando Pela Paz, coordenado por ele desde 2008, no Haiti, também motivou o convite para essa entrevista. Eu tinha certeza que muita coisa ainda havia pra ser dita, ou escrita, e que mais pessoas precisavam conhecer o Mestre por trás do escritor, o escritor por trás do Mestre, mas acima de tudo, dar voz ao ser humano por trás de ambos. O resultado é a entrevista que você confere agora.
*A entrevista a seguir foi realizada em Fevereiro de 2016 e é inédita e exclusiva do Blog Capoeira de Toda Maneira
(Maíra Gomes) - Como o senhor conheceu a capoeira?
(Mestre Saudade) - O meu primeiro encontro com a Capoeira se deu quando eu tinha em torno de 8 ou 9 anos, através de um tio, irmão da minha mãe; foi neste momento em que fui inspirado, vendo ele negaciar, pular de um lado para o outro, fazer o corta capim nas festas de família, enquanto a minha avó dizia: “deixa disso 'minino' ”.
No entanto, só iniciei meu aprendizado na Capoeira, digamos metodizada, aos 14 anos em um projeto da prefeitura da minha cidade, São Gonçalo/RJ. Foi lá onde encontrei o meu mestre, Marcos Wagner Machado de Paula, que por sua vez foi aluno do finado mestre Gingante, criador da Negrinhos de Sinhá. Foi com o meu mestre que aprendi os primeiros passos, a ginga, que tive acesso ao universo da capoeira e onde me formei mestre. Foi com o meu mestre também que tive meu primeiro contato com o trabalho social nas inúmeras apresentações que realizávamos nas comunidades e instituições.
(Maíra Gomes) - Saudade é apelido?
(Mestre Saudade) - Saudade é apelido, mas hoje é praticamente meu nome. O nome chegou num momento em que eu estava com o tempo dividido entre trabalho e capoeira, quando comecei a atuar no Viva Rio, a princípio como voluntário (um ano), e depois como funcionário. Na verdade, o trabalho tomava a maior parte do meu tempo e a capoeira terminava ficando em segundo plano. Porém, sempre que dava eu chegava na aula, pegava uma roda. E quando estava lá sempre relembrava os momentos passados, os amigos que já não estavam mais ali... “Tempo bom, tempo que não volta mais...”
(Maíra Gomes) - Fale um pouco sobre sua caminhada na capoeira:
(Mestre Saudade) - Bem, a minha caminhada na capoeira por muito tempo seguiu os passos do meu mestre até que eu comecei andar sozinho, como acontece naturalmente. Com o meu mestre, além do aprendizado, tive a oportunidade de conhecer grandes pessoas, homens e mulheres de valor, que contribuíram para a minha formação não apenas como capoeirista, mas como ser humano. Mestres, Mestras entre outros. Posteriormente, quando comecei a “caminhar só” (nunca estamos sozinhos) eu tive a felicidade de encontrar outros tantos que me nutriram com suas histórias de vida, com seus exemplos de vida. Não citarei nomes para não incorrer em injustiças de esquecer um ou outro. Mas, gostaria de registrar um deles que representaria tudo isso que estou tentando dizer. Trata-se de Gilberto de Andrade Oscaranha, o Mestre Oscaranha, (que já não está mais fisicamente entre nós) que levou a Capoeira para a Academia, para a Escola de Educação Física da UFRJ e que é sempre lembrado pelos seus grandes festivais onde eram reunidas diferentes representações da Capoeira e um número bem grande de participantes. Para mim ele permanece como um símbolo de abnegação e de luta por amor à nossa cultura, pela Capoeira enquanto uma instituição unida e forte, comprometida com o bem e com a paz.
E recentemente, ao dar início a minha volta ao mundo após sete anos de atividade no Haiti, a Capoeira tem me oferecido lições maravilhosas, permitindo o encontro com outros grandes seres humanos que sem dúvida trago comigo no coração e que me fortalecem na caminhada. Porém, ainda estou engatinhando, tenho muito ainda para aprender.
(Maíra Gomes) - O que é o Projeto Gingando pela Paz e como ele foi criado?
(Mestre Saudade) - O Gingando pela Paz iniciou as suas atividades no Haiti em 2008, com o convite do Viva Rio para trazer a Capoeira para o Haiti para atender crianças participantes de um programa de reinserção de “crianças soldados”. Deixei a faculdade, emprego para vir. Não digo que deixei minha família pois os tenho comigo sempre.
Viemos para o Haiti em 2008, porém iniciei a redação do projeto em torno de 2002/3. Eu não tinha muita experiência (há época eu atuava como assistentes para produção de eventos no Viva Rio) e tive de compreender aquele mundo, quer dizer, o mundo das ONG's, do Terceiro Setor, como funcionavam os projetos, etc. Para só então começar a escrever. No entanto, alguns elementos foram cruciais para a criação do projeto, quer dizer, me inspiraram. O primeiro foi todo o meu aprendizado enquanto capoeiristas e as diversas ações que eu já realizada com o meu mestre e nosso grupo. O segundo foi ter participado de um dos projetos oferecidos pelo Viva Rio, o Serviço Civil Voluntário, que atendia jovens em situação de risco social. Eu era um desses jovens. Com 21 anos, com o ensino fundamental incompleto, desempregado... Foi neste projeto que entrei em contato com temas como Cidadania, Direitos Humanos e trabalho voluntário. Essas informações me ajudaram a compreender melhor a mim mesmo, a minha comunidade e a sociedade; como eu poderia interagir e intervir naquela grande roda.
No final deste projeto o Viva Rio realizou um concurso, chamado Jovens no Zimbabwe onde 4 jovens seria escolhidos para representar a cultural do Brasil (Capoeira) e a juventude da comunidade. Eu tive a felicidade de estar entre os selecionados. E essa viagem mudaria não apenas a forma com que eu via o mundo, mas como o mundo me via, sobretudo a minha comunidade. Deixei de ser aquele “que daria pra bandido”, o vagabundo, para ser aquele que conseguiu romper com uma barreira invisível que nos mantinha fechados em nosso cercado, recebendo o milho, lembrando um pouco o livro de Leonardo Boff, A Águia e a Galinha. A verdade é que hoje o acesso às informações e as oportunidades são indiscutivelmente maiores. Naquela época, com 21 anos de idade, ou sequer tinha tocado em um computador. O encontro foi justamente no Serviço Civil...
O terceiro aconteceu quando eu já estava trabalhando no Viva Rio, na área de eventos. Meu coordenador me pedira para encontrar uma faixa antiga de um projeto em quartinho pequeno, quente e cheio de material, faixas de anos! Caixas de papelão, móveis, livros e muito papel. Lembro que sequer dava para eu pisar no chão. Eu fiquei muito revoltado ao abrir aquela porta e me dar conta de que achar aquela faixa em meio a tanta coisa. Levaria dias, pensei. Foi então que decidi arrumar todas as faixas ao invés de buscar uma única. E foi durante essa trabalho que vi uma apostila sobre gestão de projetos sociais do Viva Rio. Ela saiu do meio do lixo (ou pelo menos eu achava isso) e foi direto para a cabeceira da minha cama. Quer dizer, se eu tivesse uma naquela época.
O quarto foi o exemplo de um projeto chamado Luta pela Paz e do exemplo do seu coordenador Luke Dowdney, ser humano pelo qual tenho profunda admiração e respeito. Ele implementou na Maré um projeto com o boxe, o que nós anos depois faríamos com a Capoeira em Porto Príncipe.
E para fechar a inspiração, os inúmeros educadores e iniciativas que encontrava durante os eventos que o Viva Rio realizada nas comunidades: Maré, Ramos, Canta Galo/Pavão Pavãozinho, entre outras. Em todas elas a capoeira estava presente. E em todas elas os problemas era o mesmo: a falta de apoio. Foi então que resolvi criar um projeto que apoiasse esses educadores e que promovesse o diálogo entre eles. E ainda que o projeto não tenha recebido muito apoio há época, conseguimos emplacar alguns eventos importantes: a organização, à convite do amigo Luis Fernando Goulard, a avant premier do filme Mestre Bimba: A Capoeira Iluminada, que reuniu mais de 600 crianças no Cine Odeon e a primeira caminhada Gingando pela Paz. Sim pela Capoeira! Sim pela Vida! que reuniu mais de 700 capoeiristas na Orla de Copabacana, pela proibição do comércio de armas de fogo no Brasil. Particularmente, considero que ali o Gingando nasceu, após alguns anos de gestação.
Hoje o é um espaço de partilha e troca de experiência, um ambiente onde cada um ensina e aprende. Um projeto que utiliza a Capoeira para o desenvolvimento humano, pela construção de uma cultura de paz e em defesa da vida. No entanto, compreendemos a paz como um processo contínuo, um produto de cada dia onde todos são responsáveis mas que não está isenta de conflitos, mas é efetivamente a forma como lidamos e buscamos solucionar estes conflitos.
Hoje o Gingando, cada vez mais, o Gingando vem se tornando uma escola e formação de ativistas sociais, pessoas conscientes, acima de tudo, de suas capacidades, da sua força e de suas responsabilidades para com a sociedade. E utilizamos a Capoeira Social para alcançar nossos resultados.
Falo de Capoeira Social porque a Capoeira hoje está bastante pluralizada, mas sobretudo sendo utilizada como desporto em academias com o objetivo estético. Muitas vezes os educadores não possuem um grande vínculo com seus alunos ou com a comunidade, portanto, neste sentido, a capoeira perde o seu sentido social onde o mestre é uma referencia para o seu discípulo e compartilha com ele os inúmeros momentos da sua vida, sobretudo as adversidades. Enquanto que na capoeira social não só estes laços permanecem presentes e vivos, como a relação com a comunidade é constante. A capoeira faz parte da vida da comunidade e se torna mais uma aliada para proteger as crianças das inúmeras ameaças que a sociedade apresenta, como a violência armada e as drogas, por exemplo.
Mas, abrindo mais o coração, eu diria que o Gingando é simplesmente o resultado de tudo que eu vivi, as dificuldades, o contato com a violência, sobretudo a armada, que nos levaram pessoas muito queridas, familiares, jovens. Levaram de várias formas, como vítimas ou agressores... Mas, no fundo, acho que todos terminam sendo vítimas de uma forma ou de outra.
(Maíra Gomes) - O que o motivou a mudar para o Haiti?
(Mestre Saudade) - Eu simplesmente queria seguir um outro caminho e, acima de tudo, queria agir, não queria ficar apenas observando tanta injustiça acontecendo, tantas pessoas sofrendo enquanto eu pensava apenas na minha vida, na minha formação e no que eu iria fazer da vida, ou quem eu iria ser, ou o que eu iria ter. Ou seja, eu não quis aceitar essa massificação que a sociedade nos impõe nos obrigando a ser meras peças de uma grande máquina da produção que não serve senão para saciar a sede o capitalismo, e para isso utiliza a vitalidade das pessoas, os sonhos, a juventude, até que elas se tornem obsoletas. O Gingando foi a minha forma de contribuir para a construção de uma nova sociedade, onde esta valorizada e protegida – acima de tudo! - a vida.
Hoje lutamos para manter os nossos núcleos no Haiti (4). A crise mundial, apesar de fazer proliferar as mazelas, termina por reduzir o apoio financeiro em muitos países onde o empobrecimento e a miserialização da pessoa humana segue alarmante. Sem dúvida que a Capoeira consegue romper com a dependência desses recursos, pois ela ativa em nós o sentimento de voluntariado, nos levando a diante ainda que as condições sejam difíceis. Aliás, quanto maior a dificuldade mais a Capoeira cresce e ganha força, adeptos. Com a Capoeira o menos é sempre mais! “O pouco com Deus é muito!...”
Paralelamente a isso, apoiamos as ações do programa Capoeira pour la Paix (Capoeira pela Paz), que utiliza a Capoeira na reinserção de crianças desmobilizadas de grupos e forças armadas na República Democrática do Congo – RDC. Fomos convidados pela Embaixada do Brasil na RDC, aliás um exemplo que deveria ser seguido por todas as outras representações do Brasil no exterior, para fazer parte da equipe de gestão do projeto. O programa é encampado pela Unicef na região de Goma, fronteira com a Ruanda.
Compartilhamos com eles a nossa metodologia e oferecemos apoio técnico-pedagógico. O programa está crescendo bastante, indo para o seu segundo ano. Na RDC a Capoeira está se expandindo, sendo utilizada não apenas para este público, como para crianças em situação de rua ou em campos de refugiados. Quer dizer, isso é uma mostra clara de como a Capoeira, enquanto parceira da educação e promotora da paz, é uma grande aliada para a proteção de crianças, adolescentes e jovens, para garantir-lhes o direito de ser crianças e de desenvolverem as suas potencialidades com segurança, alegria e paz.
Lançamos também há poucos meses uma cooperação com a Unicef América Latina e Caribe, dentro de uma iniciativa chamada multi-país, ou seja, composto por diversos escritórios da Unicef nesta região. A cooperação objetiva implementar e fortalecer ações que utilizem a Capoeira social nestes países, de forma a minimizar o envolvimento de crianças a adolescentes com os grupos armados nestes países. Além de permitir a sistematização da nossa metodologia, estamos lançando uma rede, a Rede Gingando pela Paz para a Capoeira Social que objetiva se tornar um espaço de troca entre educadores que atuam ou que desejam atuar com a Capoeira social em seus países, em suas comunidades. Estive em El Salvador no ano passado e em fevereiro estarei na Costa Rica e Panamá apresentando a proposta para capoeiristas e parceiros em potencial.
(Maíra Gomes) - Como sua família reagiu a essa mudança?
(Mestre Saudade) - Eles sempre me apoiaram e rezaram por mim, apesar da constante preocupação.
(Maíra Gomes) - Como a Capoeira pode ser utilizada em áreas de conflito e quais os resultados vocês vêm obtendo com ela?
(Mestre Saudade) - Eu acredito piamente que a Capoeira pode e deve ser utilizada em áreas de conflito, sobretudo nessas áreas, pois, em meio ao conflito, seja promovido pela guerra ou por catástrofes naturais a criança é um dos públicos mais vulnerabilizados e em risco. E a Capoeira é uma ferramenta muito eficaz para responder a essa necessidade. Sem falar que não é necessário muito dinheiro para fazer isso. Apenas pessoas qualificadas e com boa vontade. E neste ponto é que desejo chamar a atenção! É importante que o capoeirista compreenda o seu papel e a sua responsabilidade. Compreenda que o mundo passa por uma transição difícil e que demanda uma ação urgente, e que a capoeira deve estar à serviço da humanidade, pois ela nasceu dessa mesma humanidade. Ela não é uma deusa, como muitas vezes o capoeirista a vê, criando uma verdadeira personificação dela. Porém, sem dúvida ela desperta o que temos de mais forte em nós, nosso instinto de sobrevivência e o nosso desejo de evoluir. E como bem disse o Mestre Pastinha (que nós o tenhamos sempre conosco!) “a Capoeira é um passo no sentido da evolução”. E esta evolução passa irredutivelmente para todos e no banimento de toda forma de violência, sobretudo as guerras e conflitos armados.
(Maíra Gomes) - O senhor é coautor de "Como vencer a pobreza e a desigualdade" e autor do livro "A visita, lançado em 2015 pela Chiado Editora. O senhor sempre escreveu?
(Mestre Saudade) - A minha relação com as letras teve início após assistir ao filme Sociedade dos Poetas Mortos, com o saudoso Robin Williams. Naquele momento alguma coisa se abriu na minha cabeça e comecei a escrever feito um louco. À época as poesias românticas dominavam, porém eu também escrevia algumas coisas sobre sociedade, problemas sociais... Escrever um livro foi algo que sempre acalentei, até cheguei a tentar algumas vezes mas deixei de lado. Na universidade participei de alguns concursos de redação. No primeiro fui selecionado para compor uma publicação da Folha Dirigida e Unesco que tratava sobre como vencer a pobreza e desigualdade. O segundo foi um primeiro lugar num concurso de poesias realizado pela Faculdade CCAA em comemoração ao aniversário de morte de Machado de Assis. Ao entrar na ABL, na “Casa dos Imortais”, para receber o prêmio do concurso da Folha me trouxe ainda mais o desejo de um dia lançar o livro. Hoje tenho outros projetos em andamento e espero concluí-los em breve.
(Maíra Gomes) - Em 2010 o Haiti sofreu um abalo sísmico muito forte, essa foi a maior motivação para escrever A visita?
(Mestre Saudade) - Não, o terremoto não foi a motivação para escrever A Visita. A inspiração chegou num momento especial, em que eu havia discutido com a minha ex namorada e saí de casa para espairecer. E a medida em que eu caminhava pela rua, muito escura, eu me dei conta de que não havia ninguém. Bem, muitas ruas do Haiti são escuras, não possuem iluminação pública. Mas ainda assim as pessoas vivem suas vidas, há sempre uma barraquinha vendendo alguma coisa, pessoas caminhando. Mas naquela noite não havia sequer uma alma viva.
Ao perceber isso fiquei preocupado, diversas coisas vieram na minha cabeça: poderia ter sido um toque de recolher, o prenúncio de algum conflito. Fiquei com medo de ser atacado. Depois comecei a pensar na minha ex, fiquei com medo de que alguém pudesse ter visto eu sair e entrasse na casa. No Haiti é costume muitas casas terem seguranças particulares armados e grandes arames farpados nos muros, como aqueles utilizados nas guerras. A preocupação aumentava a medida que eu caminhava até que senti a presença de uma criança ao meu lado. E foi suficiente para que toda aquela tensão, todo aquele medo se dissipasse. E foi só a tranquilidade voltar para que a inspiração para o livro chegasse: o Pequeno Príncipe havia visitado o seu porto, Porto-Príncipe. Voltei para a casa sem lembrar do que havia causado a discussão, baixei o Pequeno Príncipe novamente para entender porque eu havia recebido aquela inspiração, li o livro com um olhar dissecador como eu jamais havia feito das inúmeras vezes que li a obra e no final vi que o aviador havia deixado um pedido: se alguém encontrasse o seu amigo (o Principezinho) que o avisasse rapidamente. E foi simplesmente o que fiz. O título original teria sido “O dia em que o Pequeno Príncipe visitou o Haiti" porém, como não foi possível conseguir a autorização dos detentores dos direitos autorais, tive de fazer algumas modificações, sobretudo no título. Mas ele está lá, como uma criança. O engraçado é que por eu utilizar sempre o feminino, “ela, a criança”, a “criança” minha visitante, muitos terminam por acreditar que se trata de uma menina.
Bem, apesar de o terremoto não ter sido a motivação para escrever o livro, seria importante falar um pouco sobre. Foi uma grande tragédia, uma página triste da história da humanidade, mas que contrariamente demonstrou a nossa força. Muito embora o cenário tenha sido desesperador, com centenas e centenas de pessoas sob os escombros, mutiladas, uma profusão enorme de perdas, ele fez aflorar a capacidade de nós seres humanos transcendermos nossos próprios limites, buscarmos forças de onde não pensávamos encontrar e, sobretudo, deixarmos de lado as nossas diferenças e nos reconhecermos como irmãs e irmãos que somos. Porém, ele revelou também o lado mais sombrio das nossas almas; enquanto muitas pessoas estavam e chegavam para ajudar, outras se aproveitaram deste momento de dor para benefício próprio. E não apenas estrangeiros como se pode pensar. O que só me faz crer que, enquanto a solidariedade e o amor ao próximo nos irmana e enriquece, a ambição nos individualiza e empobrece. E eu vi muitas pessoas ricas naquele momento, maltrapilhas, com fome, porém com a sua dignidade intocada, carregando os corpos de seus irmãos pelas ruas em macas improvisadas.
(Maíra Gomes) - Essa experiência no Haiti mudou sua forma de ver a Capoeira como instrumento de transformação?
(Mestre Saudade) - Sim, sem dúvida. O Haiti mudou a minha forma de ver a Capoeira. Ele não só me mostrou a força que a Capoeira tem para a transformação, como me trouxe a certeza de que há esperança mesmo nos momentos mais difíceis, onde parece que não há mais saída. No Haiti foi onde realmente aprendi a ser um capoeirista em sua totalidade, dentro e fora da roda, no dia a dia, nas incertezas dos caminhos; coisa que nossos antepassados viveram no passado. E realmente foi como voltar ao passado. Muitas vezes eu me sentia como se estivesse em uma zona onde o tempo não existe, onde passado e presente se misturavam e o futuro era incerto, uma linha tênue que seria definida pela nossa atitude. E nesses momentos eu sentia a forte presença da ancestralidade comigo. Eu sempre me agarrei a eles para fazer a minha caminhada. Graças a Deus tenho conseguido e espero ter a permissão de ir mais longe, de realizar muito mais.
(Maíra Gomes) - Qual o futuro do Projeto Gingando pela Paz?
(Mestre Saudade) - Bem, estamos num momento bastante especial no Gingando. Após 7 anos de trabalho árduo, de muito aprendizado, estamos caminhando para nos tornar uma organização independente (se é que podemos usar este termo hoje). Seguramente isso exigirá muito mais trabalho e aprendizado, sobretudo para criar uma estrutura forte e democrática, onde cada um possa dar a sua contribuição para que a instituição ganhe força e muitos frutos. Felizmente temos uma boa escola, e porque não dizer, um grande pai. O Viva Rio, onde tive a oportunidade de idealizar o projeto, realmente nos permitiu nascer, crescer e agora que estamos alcançando a nossa maturidade tem nos oferecido um apoio importante para conquistarmos a nossa autonomia. E esta é uma das grandes valências desta grande instituição pela qual tenho muita gratidão e carinho. Certamente, para mim não é fácil “sair do ninho”, sobretudo por todos os anos que já estou no Viva Rio. Porém, acredito que é uma mudança necessária e que sem dúvida irá nos oferecer muitas experiências boas. A relação com o Viva Rio permanece sempre e certamente ainda iremos realizar muitas coisas juntos.