domingo, 24 de dezembro de 2017

Entrevista

Mestre Adelmo Lima
Origens do Brasil



Mestre Adelmo se define como uma pessoa simples, mas, durante a pesquisa para essa entrevista, percebi que nada é simples na vida de Adelmo Pereira Lima. 
Nasceu em 15 de julho de 1962, porém, em sua certidão consta que nasceu em 1964. Um erro que ele só descobriu na idade adulta.
Natural de Brasília, Distrito Federal, Mestre Adelmo teve um encontro inusitado com a nossa arte. Digamos que primeiro ele se encantou por seu Mestre e desse encantamento surgiu o amor pela Capoeira. Uma história muito bonita de um  menino que encontrou em seu Mestre o carinho que ele tanto precisava.
Das numerosas reflexões feitas por ele durante essa entrevista, destaco uma que me tocou profundamente: " O 'ser' Mestre é um estado subjetivo que só será substancializado no corpo e na alma do praticante depois de muito tempo de dedicação, estudo e trabalho responsável pela Capoeira." 
Essa frase é um oásis em tempos de vendas de graduação, de pressa para chegar a um lugar que é muito mais subjetivo do que físico, de constantes polêmicas fomentadas pelas redes sociais. E é também uma pequena amostra do que foi essa entrevista.
Boa reflexão a todos!

*A entrevista a seguir foi realizada em Dezembro de 2017 e é inédita e exclusiva do Blog Capoeira de Toda Maneira 

(Maíra Gomes) - Como começou sua história com a Capoeira? 

(Mestre Adelmo) - Aos 12 anos de idade, como qualquer moleque, eu jogava pelada (futebol de rua) e tinha um amigo que estava ingressando no time do infanto-juvenil do Brasília futebol clube, chamado Gilbert. O pai do Gilbert faleceu e isso foi trágico pra ele. O Gilbert sabendo da paixão do pai pela Capoeira resolveu procurar onde tinha uma academia para ingressar e me chamou para ir com ele. Eu particularmente não tinha nenhum interesse na Capoeira, pois, não conhecia bem, quero dizer, não conhecia nada. Não tinha a mínima ideia do que seria Capoeira. Eu tinha uma família desestruturada e sofria de baixa autoestima, pois, os relacionamentos eram conflituosos, não existia violência, nem problemas com drogas, só um vazio nas relações que me fazia sofrer muito. Quando Gilbert encontrou um local que tinha aulas de capoeira me procurou imediatamente. Fomos nós dois em uma segunda-feira, às 17 horas, na QE 22 (Quadra externa) do Guara I (cidade satélite de Brasília, onde morávamos). O local era no fundo de uma casa onde o proprietário, senhor Assis, era fabricante de armas marciais para Taekwondo, Caratê e Kung fu e no fundo da casa construiu uma academia chamada Pequeno Dragão, como homenagem ao Bruce Lee. Eu estava assustado com o ambiente, pois, era diferente de tudo que eu já tinha visto na minha vida. Um corredor lateral dava acesso ao fundo onde tinha aulas de artes marciais. E era o dia de aula de capoeira! Quando chegamos no local fiquei maravilhado com um desenho em gesso do símbolo ying-yang com um dragão serpenteando ao redor dele. Quando de repente olhei para o canto da sala e ele estava lá, um homem negro, de estatura mediana, físico atarracado, olhar vivo, cabelo black power, bigode largo e um sorriso marcante. Ele se aproximou, eu estava paralisado, e sem nenhuma explicação lógica ele se abaixou próximo de nós e fez um carinho com as costas das mãos no meu rosto e me perguntou se eu queria treinar Capoeira. Não sei exatamente o que aconteceu, quando dei por mim eu estava na rua correndo e chorando. Só anos depois pude entender minha reação. Aquele foi o primeiro carinho que lembro ter recebido. Uma emoção diferente, uma mistura de susto e gratidão. O Gilbert ficou treinando, eu não podia treinar porque era vendedor de picolé, tinha que ajudar em casa e não me sobrava nada para pagar as aulas. Mas todo dia de aula eu ia lá só pra ficar olhando pra ele por trás de uma fresta da porta. De lá eu poderia ficar olhando sem ser visto. Um dia ele me flagrou e perguntou se eu queria treinar. Eu nunca gaguejei tanto na minha vida (risos) e disse que sim, que queria treinar. Acho que na verdade eu só queria ficar perto dele. Imediatamente procurei outra ocupação para conseguir o dinheiro pra pagar as aulas. Fui vigiar carros na feira do Guará e a tarde vendia pipas que eu mesmo fazia para conseguir dinheiro para pagar as aulas. Isso foi há 39 anos.

(Maíra Gomes) - Conte um pouco da sua caminhada até a formatura de mestre.

(Mestre Adelmo) - Eu nunca quis ser Mestre, isso é uma posição onde pra mim é claro: o Barto é o Mestre e eu sou o aluno.  
Comecei a perceber o que a Capoeira poderia me oferecer, eu via os outros formados do mestre se transformando em pessoas melhores. E com esta impressão do que via e sentia eu fui acometido com um sentimento muito forte de que a Capoeira era minha responsabilidade. E isso era muito complicado para um adolescente entre os 13 e 14 anos. Naturalmente eu não fazia a mínima ideia de como proteger ou ajudar a Capoeira e, a cada dia, eu ia me afastando dos amigos, não jogava mais bola, nem soltava pipa, a principio pelo preconceitos de muitos, pois, ser capoeirista era sinônimo de marginal e ainda, como se não bastasse isso, sofri muito na família, sendo assim preferi me poupar  e sumir. Era só estudar em escola publica e treinar escutando Lps de samba pra poder treinar em casa quando meus pais não estavam. Ou no mato próximo de casa quando não tinha aulas na escola. Foram anos sozinho e as únicas companhias que eu tinha era o meu Mestre Barto e o Marcão outro aluno do mestre com quem criei laços de amizade que duram a te hoje. O Gilbert só treinou 6 meses, o Marcos parou de treinar depois de uns 5 anos e hoje é cantor de Rap com o GOG, que também participava dos treinos a partir dos anos 80, quando fundei o Origens do Brasil, no CDS – Centro de Desenvolvimento Cultural.
Meu mestre me deu o certificado de formatura em 1996. No entanto, solicitei não usar o título, nem a corda ainda. Em 2002 ele solicitou o evento pra minha formatura definitiva. No dia anterior ele me informou que não poderia vir e que mestre Pombo de Ouro, mestre formado de mestre Bimba na década de 60, e que tive a oportunidade de acompanhá-lo por mais de 20 anos, iria amarrar a corda na minha cintura como meu padrinho ( Mestres Guga, outro formado de Mestre Bimba e Mestre Alcides também são meus padrinhos de formatura). Mestre Barto veio a são Paulo dois anos depois e, após um jogo comigo, consagrou minha graduação. Eu ainda não estava confortável com o título de Mestre, até que em 2012, em Brasília, Mestre Barto me chamou pela primeira fez de Mestre. Isso foi na formatura de outro companheiro de treinos, o Junior Gariba, no evento do mestre Rizomar, no Zoológico de Brasília. O chamado do mestre para mim foi o início de minha conscientização e percebi que minha carreira começou naquele dia. Dez anos após a entrega da corda minha responsabilidade com a Capoeira começou a ter um peso significativo para mim. O peso de que, dali em diante, eu deveria estar melhor preparado para cuidar dela. Esse sentimento é o que me conduz até os dias de hoje. Sou um trabalhador da Capoeira, vivo pra ela, vivo dela e, fundamentalmente,  ela me ajuda a viver melhor.

(Maíra Gomes) - O que motivou a criação do Projeto Cultural Origens do Brasil? 

(Mestre Adelmo) - Na época o Mestre Barto era muito rígido, e é ate hoje, e em 1984 me formei professor, na época corda amarela, e ele relutava em o aluno não dar aulas, hoje eu entendo ele. Pois bem, aquela minha ânsia e sentimento em ser responsável pela Capoeira falou mais alto e pedi ao mestre autorização e, com alguma relutância, ele permitiu que eu começasse a lecionar Capoeira junto ao Contramestre Magno. A condição era que eu não poderia usar o nome do grupo. Não era o que eu queria mas eu não poderia contradizer meu Mestre. Assim, junto com alguns amigos sentados em reunião falei do meu anseio e pedi algumas sugestões de nomes. Nenhum nome sugerido me estimulou e de repente me veio o nome de ancestralidade e origens. Origens venceu a eleição e foi fundado em 20 de novembro de 1985 em Brasília – DF. Portanto, o “ser” Mestre é um estado subjetivo que só será substancializado no corpo e na alma do praticante depois de muito tempo de dedicação, estudo e trabalho responsável pela Capoeira.

(Maíra Gomes) - O senhor publicou o livro “Capoeira, Um Universo de Inspiração” em 2010, seus textos circulam na internet e fazem muito sucesso. Como foi o processo criativo desse livro?

(Mestre Adelmo) - Esse livro foi o resultado daquele sentimento de ser responsável pela Capoeira que ainda hoje não compreendo muito bem, portanto, prefiro confiar nele. Os textos começaram a “vir”, “me foram dados” a partir de 1980. Muitos outros ainda estão guardados. A minha vida na Capoeira não foi fácil, além do preconceito na família e dos amigos, sofri perseguição na escola e passei fome por muito tempo e acredito que tudo isso foi como um filtro para que eu pudesse ter condições de compreender alguns segredo da Capoeira. Mestre Pombo de Ouro sempre dizia pra mim: “A capoeira é um tesouro desconhecido só revelado a poucos. E cada um só receberá uma parcela deste segredo”. Essas palavras me marcaram a ferro e a fogo. Naturalmente  não compreendo os segredos da capoeira, ninguém tem esse poder, mas procuro me preparar para esse caminho. Assim, vivendo em um redemoinho de sentimentos e expectativas, acabei conseguindo transportar para o papel um pouco do sentimento do SER CAPOEIRA. E intuitivamente os textos vieram, em sua maioria, de uma só vez,  em um só fôlego, como um temporal e imediatamente onde eu começava eles “vinham” e eu precisava  escrever. Caneta e papel eram meus companheiros constantes. E assim produzi uma grande coleção de textos entre 1981 até hoje, os dois últimos, até o momento, em 2016: A elegância do Mestre de Capoeira, narrado por Mestre Angoleiro, formado de Mestre Bimba na Bahia na década de 40 e O Mestre é a semente, que está sendo narrado por Mestre Tabosa, formado de Mestre Arraia, na década de 60, em Brasília. Outros tantos textos estão espalhados no mundo virtual.

(Maíra Gomes) - Em 2016 foi a vez de publicar “Ser Criança é Alegria, a Capoeira Como Eficiente Método Pedagógico”, é uma proposta diferente do livro de 2010, não é mesmo?

(Mestre Adelmo) - Sim, o diferencial deste projeto é o trabalho de campo que executei por 31 anos, 1985 a 2016, experimentando, modificando, ampliando e colhendo resultados nos núcleos de trabalho em Brasília, Recife, Alagoas, Londres e São Paulo. O retorno dos milhares de alunos que passaram por minhas mãos e de seus respectivos familiares, unido a grande massa de capoeiristas que participaram de meus cursos, vivências e palestras em mais de 20 estados do Brasil e países do exterior, foram meu termômetro da eficiência do método, culminando com a publicação da obra em 2016.

(Maíra Gomes) - Ambos os trabalhos vêm com CDs, aliás, o senhor é pioneiro quando falamos de audiolivros de Capoeira. Como surgiu a ideia?

(Mestre Adelmo) - Sim tive a sorte de ser o pioneiro neste tipo de trabalho de áudio livro. A ideia surgir de forma intuitiva e no anseio de dinamizar  e facilitar o acesso aos conteúdos. Usar a tecnologia para o fácil acesso a Capoeira. Em Capoeira um Universo de Inspiração que foi lançado em 2010, no Reino Unido, na versão em inglês, percebi a necessidade das nações que não dominam a língua portuguesa que, pela dificuldade de compreender a escrita poderiam ter acesso aos textos como às músicas de Capoeira. Neste processo fui premiado quando fiz o convite ao Mestre Pinatti. Ele na altura de sua sabedoria e dono de uma das história mais belas e consistentes na Capoeira, aceitou imediatamente e por duas vezes fomos para estúdios para a gravação da narração do livro. A segunda gravação ainda não está disponível ao público, será lançada provavelmente em 2018, junto ao livro nas versões português/inglês e futuramente um DVD com o making off das gravações. 

(Maíra Gomes) - Teremos novos livros? 

(Mestre Adelmo) - Sim! Já está pronto o Papoeira 2000 que é uma transcrição do primeiro Papoeira, termo e evento criado por Mestre Pombo de Outro, formado de Mestre Bimba na década de 60, na Bahia. 
Está em fase de conclusão o Textos e Reflexões, coletânea de frases, A Natureza Mistica da Capoeira e Ensaios de uma Alma Negra no Universo da Roda de Capoeira. Todos sem data de lançamento.

(Maíra Gomes) - O senhor é casado? Tem filhos? Sua família também pratica Capoeira?

(Mestre Adelmo) - Sou e tenho três filhos. O mais velho, Lucas,  mora em Brasília e é dono de padaria. A Catrina, de 23 anos, que mora no Mato grosso e a caçula Sofia, 3 anos, e é a capa de meu segundo livro, Ser Criança é Alegria e treina capoeira, faz dança com minha esposa, que é professora de Dança do Ventre e bailarina.

(Maíra Gomes) - O surgimento de grupos de Capoeira evangélicos tem preocupado muitos capoeiristas e também o movimento negro. Sendo o senhor formado em teologia, o que pensa sobre esse assunto?

 (Mestre Adelmo) - Não vejo perigo, pois, já surgiram tentativas de mudar a essência da Capoeira e foram fracassados. Temporariamente podem até mudar a forma e os rituais, portanto a Capoeira tem o poder de se autorregenerar. Ele é autossustentável e regeneradora. Ela é um organismo vivo que nos conduz e qualquer elemento estranho que invade seu corpo é extirpado mais cedo ou mais tarde. Olhem a historia!!!

(Maíra Gomes) - Além de mestre de Capoeira, teólogo e escritor, o senhor é professor de WON HWA DO, uma arte marcial coreana. Onde o senhor aprendeu e como surgiu o interesse por essa arte?

(Mestre Adelmo) - Fui seminarista dos 27 aos 34 anos de idade. No seminário eu treinava sozinho quase todo dia e veio da China um seminarista que morou na Coreia, Fred, e aprendeu o WON HWA DO (caminho circular), uma arte marcial coreana e ele vendo meu empenho em treinar Capoeira, estando fisicamente preparado, começou a me ensinar até eu estar apto a dar aulas. Cheguei a dar umas aulas só que a Capoeira falou e fala mais alto e abdiquei. Por outro lado, o meu tempo era tomado pelos estudos, viagens e treinos. 

(Maíra Gomes) - Consegue identificar alguma semelhança entre WON HWA DO e a Capoeira, mesmo que filosoficamente? 

(Mestre Adelmo) - Toda arte marcial tem seu código de conduta universal. O corpo se conecta com a mente. A mente é a produtora do corpo e por e através dela o corpo surge e se desenvolve. O espírito é a essência da mente e do coração. O treino, a disciplina, a honradez são atributos da alma que são desenvolvidos na mente através do “sacrificio” do corpo. O jejum, a oração, o treino a meditação trazem a iluminação. Esses são os princípios do WON HWA DO esses são os atributos subjetivos da CAPOEIRA.

(Maíra Gomes) - Com faces tão múltiplas, o que mais tem para saber sobre o Mestre Adelmo?

(Mestre Adelmo) - Sou um cidadão comum, que ama a Capoeira como tantos outros camaradas pelo mundo. Em meus momentos de intimidade adoro me dedicar a família, ao artesanato, leitura e filmes. Simples.

(Maíra Gomes) - Pra finalizar, o senhor está satisfeito com o panorama atual da Capoeira?

(Mestre Adelmo) - Sim.....a Capoeira está onde deve estar, porque é ela que nos conduz.. Se ela é um organismo vivo isso nos diz respeito a ter consciência de si e de seu trajeto na história. Já tivemos a fase de violência, de afirmação e a fase dos desconhecimentos, paralelo a idade média. A era das trevas na Capoeira. Hoje começamos a perceber que a luz esta surgindo e que novos e melhores tempos estão por vir, para o Brasil e para a compreensão de toda a sociedade brasileira sobre sua cultura e isso vai acontecer apesar dos esforços dos que não querem. 



Imagem de arquivo pessoal

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